viernes, 17 de octubre de 2008

De Ialodês e Feministas




De Ialodês e Feministas[1]
Reflexões sobre a ação política das mulheres negras na América Latina e Caribe1
Jurema Werneck[i]

A luta pela emancipação da mulher negra não tem por finalidade apenas formar mulheres seguras, capazes e brilhantes, que visem com isto adquirir privilégios individuais. Essas conquistas são como veículos para gerar transformações na vida da população negra.[ii]

Primeiro movimento:onde começa a história?
Há alguns anos atrás tive a oportunidade de assistir, num canal de televisão brasileiro, a uma entrevista de um ativista indígena por ocasião das comemorações pelos 500 anos do chamado Descobrimento do Brasil. Ou seja, da invasão dos colonizadores europeus (portugueses) às terras de Pindorama (nome dado por alguns dos povos habitantes da região). Indagado sobre o que achava destes 500 anos do Brasil, ele, segundo retive em minha memória, respondeu:



500 anos? Meu povo já estava aqui quando eles chegaram... Eu sou capaz de contar a história deste rio que estamos vendo em até 5 mil anos...O que
eu posso dizer sobre 500 anos?.

Começo isto aqui com esta perspectiva: de anterioridade. De uma história que não é fundada pelos europeus (ainda que mais recentemente tenha sido profundamente influenciada por eles). De outras possibilidades interpretativas ou de diferentes possibilidades de se estabelecer marcos para se recontar uma história.
Reconheço que a capacidade de dar nomes às coisas fala de uma situação de poder. Ou seja, de uma possibilidade de ordenar o mundo segundo bases próprias, singulares, desde pontos de vista individuais quanto a partir de coletividades, de povos inteiros. Trata-se de uma posição de privilégio. Ainda que eu não vá discutir aqui quais e quantas armas estiveram envolvidas na obtenção destes privilégios – mas não me é possível esconder o fato de que se tratava (e se trata) de armas.
Ao nomear a luta das mulheres a partir de sua perspectiva - mulheres brancas burguesas
européias nas décadas a partir de 1970 - as formuladoras iniciais da teoria feminista trouxeram para o conceito recém-criado a perspectiva ocidental e mais, fundada numa ignorância profunda acerca das demais mulheres do mundo. Além de se fundamentarem num individualismo crescente que teve o capitalismo como pano de fundo.
Até que ponto o conceito “feminismo” é suficiente para abarcar todas as mulheres, todo
ativismo, toda luta?
Para nós mulheres negras - compreendidas como uma diversidade incomensurável, porém marcadas por desigualdades que têm origem na inferiorização e exploração - as múltiplas ações políticas que empreendemos atravessam diferentes níveis de atuação, diferentes campos da existência, marcadas por encontros conflituosos ou violentos com o ocidente, com o patriarcado, com o capitalismo, com o individualismo...

É suficiente chamar isto de feminismo?
Afirmou bell hooks:
O movimento feminista acontece quando grupos de pessoas se juntam com uma estratégia organizada de ação para eliminar o patriarcado.[iii]
Mas devemos explicitar a impossibilidade prática de dissociação entre patriarcado, racismo, colonialismo e capitalismo – tudo parte do mesmo “pacote” de dominação do ocidente sobre as demais regiões do mundo. E que não se estrutura em capítulos ou hierarquias. Ao contrário, age sobre as mulheres como um bloco monolítico, às vezes pesado demais.
Mas na perspectiva posta por bell hooks, a luta das mulheres negras por descolonização nos diferentes níveis, ou seja, de corpos, mentes, sistemas políticos, econômicos, sociais, religiosos, culturais, raciais, etc, poderá implicar um feminismo, claro. Este, diferenciado daquele produzido pelas diferentes correntes do lugar comum feminista e provocando uma contradição indissociável em seu interior, uma vez que se coloca em confronto com posições de privilégio ou de dominação. Ou seja, de confronto com os interesses mais cotidianos dos habitantes brancos do mundo; principalmente os da Europa e dos Estados Unidos, independente de serem homens ou mulheres.
Sendo uma vertente do feminismo, as formas organizativas das mulheres negras contemporâneas confrontam burgueses - onde quer que estejam: liberando monóxido de
carbono e outros gases venenosos na atmosfera; aumentando a carga de lixo tóxico que será depositada nas comunidades negras e indígenas; vivendo confortavelmente em troca da super-exploração capitalista e do trabalho escravo de mulheres, homens, crianças.
Confrontando um conceito de ativismo que olha para o próprio umbigo e ampara-se na
racionalidade e num evolucionismo darwinista. Confrontando noções de centro e periferia.
E afirmando suas próprias bases não dialéticas; sua fundamentação em culturas de arkhé, de tempo cíclico e modos de ritualização que penetram o ocidente e sua racionalidade; que trabalham como ele, ao mesmo tempo que buscam fragilizá-lo. Numa perspectiva de jogos de forças – jogo este que deve ser visto, nesta perspectiva, como o movimento que gera e mantém a existência.
Por outro lado, não parece adequado aqui ou em qualquer espaço da reflexão política,
trabalhar com as esferas psicológicas e morais, que se traduzem na mobilização de sentimentos de culpa depositados nos mecanismos de afirmação identitária das que podem ser definidas como dominadoras. Nem articulá-los em favor da aceitação de argumentações provenientes daquelas que poderiam ser chamadas de dominadas. Desse lugar recusado, a perspectiva redutora implica a consideração da fala da feminista negra como fala de vítima. O que é, por diferentes razões, inaceitável.

Segundo movimento: a fundação violenta da diáspora
As mulheres negras têm sua história atrelada à história da região a que se convencionou
chamar nos últimos séculos de América Latina e Caribe há aproximadamente 500 anos. As condições desta presença, como é sabido, estão vinculadas a um dos maiores flagelos que a humanidade já viveu: o tráfico transatlântico de africanos de diferentes nacionalidades trazidos para o trabalho escravo na região recém ocupada pelos europeus. Tráfico este precedido de guerras, morticínios de grupos inteiros, destituições e aniquilamentos – tanto físicos quanto culturais - desde o território africano. É fácil de reconhecer que o tráfico transatlântico vai impactar profundamente e de diferentes maneiras a vida das mulheres desde o início.
O impacto da migração maciça de africanos para esta região do mundo continua a requer ampliação e aprofundamento dos estudos. No entanto, sabemos que entre a chegada de Cristóvão Colombo na região e o ano de 1776 (ano da revolução Americana), a região recebeu seis milhões de pessoas – sendo 5 milhões formados por africanos escravizados e o restante por europeus. Sabe-se também, que durante todo o período da migração forçada pelo tráfico transatlântico, 40 % de todos os africanos foram trazidos para o Brasil (Dodson, 2001: 119).
A escravidão significou e ainda significa a redução do humano à condição de mercadoria, produto perecível mas de alto valor, deslocado para a exploração e produção das riquezas no ambiente tropical. Mineração; lavoura; construção e manutenção de povoados incipientes, cidades e habitações de europeus e seus descendentes; estão entre as principais atividades que eram exercidas num contexto de violência e exploração extremas. Tendo destaque a exportação sistemática de riquezas e seus frutos que servirá de base para a instalação e consolidação do capitalismo nos territórios brancos.
Segundo alguns relatos históricos, a vida média de trabalhadores escravizados, principalmente aqueles presos aos trabalhos nas lavouras, em países como Brasil, por
exemplo, não excedia a 7 anos!
Não é difícil compreender o contexto da escravidão como um contexto de resistência e luta, a partir da constatação da humanidade de negras e negros escravizados. Capazes de proposição cotidiana de alternativas de sociabilidade, habitabilidade a estratégias política para retorno à África ou para o enraizamento em bases diferentes na nova geografia. Revoltas armadas; novos territórios de liberdade (como quilombos[iv] e outros); além de ações cotidianas de sabotagem e recusa. Todas estão entre as ações que terminaram por criar um ambiente de transformação e que culminaram com a destituição do tráfico transatlântico e do regime escravagista na região – sendo o Brasil o último país da região a promover a Abolição em 1888.
Independente dos marcos temporais que poderiam significar o início da história do patriarcado no mundo e na região, podemos afirmar que este se enraizou profundamente na sociedade e no regime de exploração escravagista. A apropriação e exploração de corpos humanos não conhecia limites, cabendo aos homens o poder de tortura, o controle dos sistemas políticos, das riquezas produzidas e do grupo humano. O centro do poder era o homem branco – restando a mulheres e homens indígenas, africanos e seus descendentes a subjugação corporal, sexual e política.
A instauração do regime da escravidão mercantil européia significou para as mulheres
africanas uma profunda ruptura com padrões antigos de exercício de poder, tanto no nível individual, corporal, quanto na perspectiva coletiva, em seus aspectos políticos e de relação com o sagrado. Conseqüentemente à desorganização social e política dos diferentes povos atingidos pelo holocausto africano – num modelo de globalização econômica, cultural e política que precede o atual, numa perspectiva predatória que emerge da Europa e se espalha pelos demais continentes – novas alternativas tiveram que ser gestadas e aplicadas, no sentido de se buscar patamares de existência e resistência cultural. Ao mesmo tempo, padrões antigos e tradicionais tiveram que ser recriados e adaptados às condições adversas tanto na África quanto no novo território.
Segundo informações e práticas passadas de geração em geração entre mulheres negras
integrantes das diferentes comunidades religiosas presentes no Brasil, a liderança e responsabilidade feminina no trato com as questões transcendentais religiosas, culturais e com as questões políticas é antigo e antecede em muito a história do colonialismo europeu da África. Ainda que não possamos identificar com precisão a origem de muitos costumes implantados no chamado Novo Mundo, é possível afirmar que diferentes costumes foram trazidos, reinterpretados e adaptados ao novo contexto. Em muitos deles, adquire importância fundamental a ação das mulheres.

A viagem das Ialodês
Foram muitas as matrizes culturais africanas que, transplantadas, puderam permitir o enraizamento do enorme contingente de africanas e africanos na diáspora. Muitos de seus traços, misturados ao longo da travessia do oceano; pela ação deliberada do colonizador, no intuito de dificultar articulações para a resistência baseadas na etnicidade; bem como pela convivência cotidiana entre os diferentes grupos étnicos nas ruas e nas senzalas[v], embaçaram as marcas que possibilitariam a viagem de volta às origens. E esta origem se refere a uma África inalcançável, emblemática, figura feminina urdida como instrumento de resistência cultural à ideologia europeizante.
Vêm portanto, de uma África mítica, imaginada; de uma África que é real, porém traduzida, os padrões de organização e ação política empreendidas até aqui.
Vêm desta África também diferentes modalidades de organização e formas de representação e ação política das mulheres que no Brasil adquiriram diferentes formas. A celebração das rainhas nas atividades culturais públicas, bem como seu papel político integrador do grupo. A organização das atividades religiosas, profanas e festivas, a partir do contexto oferecido pela escravidão; a formação de sociedades secretas ou públicas de mulheres a partir dos compromissos religiosos ou étnicos; estão entre as iniciativas que têm em comum o reconhecimento da liderança das mulheres, sua presença nas atividades públicas, bem como seu papel político. Isto vivido ao longo dos séculos XVI e XIX, ou seja, durante a vigência do regime escravista europeu patriarcal.
Tais iniciativas atuaram e atuam como modelos organizativos e de conduta para mulheres e homens das sociedades pós-escravistas até os dias de hoje.
Entre as diferentes possibilidades de exercício da liderança feminina, desde uma perspectiva de ação política, quero destacar a ialodê.

Terceiro movimento: as Ialodês na diáspora:
O conceito de ialodê como definição cultural e política das ações das mulheres aparece no Brasil em data imprecisa. Sua origem é o continente africano, que passa a inundar a cultura ameríndia a partir do tráfico transatlântico de escravos. Consta das informações
remanescentes do passado escravista do Brasil[vi] que as ialodês chegaram por aqui junto com africanos escravizados – o que aconteceu no final do século XVIII.
Ialodê é a forma brasileira para a palavra em língua iorubá Ìyálóòde (Verger, 1997: 174).
Segundo algumas das tradições africanas transplantadas para o Brasil, Ialodê é um dos títulos dados a Oxun, divindade que teve origem na Nigéria, em Ijexá e Ijebu.
Ialodê se refere também à representante das mulheres, a alguns tipos de mulheres emblemáticas, lideranças políticas femininas de ação fundamentalmente urbana. É, como dissemos, a representante das mulheres, aquela que fala por todas e participa de instâncias de poder.
As ialodês, por outro lado, têm afirmado sua presença e atualidade no século XXI a partir das narrativas corporais e orais, passadas de boca para ouvidos, para olhos atentos, nos diferentes espaços onde a tradição herdada é atualizada. No caso brasileiro, é visto em qualquer comunidade negra, onde a mulher, assumindo papéis de liderança ou responsabilidade coletiva, desenvolve ações de afirmação de um futuro para todo o grupo subordinado. Isto através das lutas por melhorias nas condições materiais de vida, bem como no desenvolvimento de condutas e atividades que visam afirmar a pertinência e atualidade da perspectiva imaterial. Assim, não apenas nas comunidades religiosas afrobrasileiras, onde têm papel fundamental na propagação do axé, mas também nela, a figura da ialodê se faz necessária e celebrada.
Um relato sobre ela vem a seguir. Trata-se de uma história da tradição oral da comunidade religiosa, que tem sido contada e recontada a partir das comunidades de Candomblé de Ketu [vii] no Brasil:
Conta-se a história de uma mulher trabalhadora e obstinada de nome Oxum. Que, apesar de seus muitos esforços, não conseguia melhorar de vida. Vendo que nada do que fazia era suficiente para superar suas dificuldades, resolveu procurar ajuda entre as pessoas sábias da comunidade. Como sempre acontece nestes casos, fez, através do jogo de búzios, uma consulta aos orixás, de modo a se reparar os problemas que vivia. A resposta veio com a necessidade de preparo e entrega de uma oferenda na casa de Orixalá, o rei. Esta entrega everia vir acompanhada de pedidos, em voz alta, de tudo que fosse necessário para que assim Oxum pudesse finalmente progredir.
E assim foi feito. Preparada a vistosa oferenda, Oxum foi levá-la ao palácio do rei.
Chagando lá, ao invés de pedir, Oxum começou a maldizer o rei. Acusando-o de injusto e opulento, enquanto ela, uma mulher trabalhadora e dedicada, não conseguia nada.
Suas maldições jogadas contra Orixalá provocaram alvoroço e aos poucos foi juntando gente em volta da casa do rei para ver o que se passava. Lá dentro, ouvindo os rumores da multidão, Orixalá convocou seus conselheiros, pedindo informações. Estes lhe contaram que se tratava de uma mulher que vigorosamente amaldiçoava o rei, acusando-o de toda sorte de desigualdades e injustiças. Orixalá pede a seus assessores um conselho e estes recomendam que o rei dê algum presente à mulher, para fazê-la calar-se. O que é feito rapidamente.
Recebendo os presentes, Oxum agradece e renova suas maldições, insistindo na injustiça da situação em que o rei acumulava riquezas enquanto ela, uma mulher lutadora, tinha muito pouco. Novos presentes lhe foram entregues. Novas maldições ela dirigiu ao palácio, na frente de toda a cidade que observava excitada as acusações contra o rei, cuja soberania estava sendo posta em questão.
Dentro do palácio, os conselheiros continuavam recomendando presentes à Oxum.
Finalmente, o rei a mandou buscá-la e, já dentro do palácio, mandou que lhe dessem tudo o que ela desejasse.
Dessa forma, Oxum tornou-se a dona de todo o ouro e de toda a riqueza.


Aqui, este relato tem a utilidade de expor um dos pressupostos do papel feminino negro
vivido pelas mulheres no Brasil. Estes pressupostos falam de dimensões de luta, de instabilidade de posições, de poderes de agenciamento e transformação capazes de serem vividos pelas mulheres. Falam da disponibilidade para a luta e das possibilidades de êxito que a luta traz. Fala da responsabilidade das mulheres em relação ao grupo. E da existência de uma coletividade de interesses, a que cada indivíduo deve se reportar.
Fala do poder masculino sendo questionado. Fala do poder da riqueza sendo questionado.
Fala da revolução onde a riqueza muda demãos.
Fala da presença das mulheres no espaço público, sua capacidade de liderança, de ação
política.
Fala de Oxum, a ialodê primordial, segundo a tradição. A orixá marcada pela sensualidade, pela força de vontade e capacidade de realização. E celebra a figura das ialodês, mulheres que se colocam como agentes políticos de mudança, detentoras principais das riquezas conquistadas.
Assim, recoloca a dimensão ativista que as mulheres negras têm vivenciado, desde seu
passado (ou presente) africano até o cotidiano da diáspora.
Ainda que se tenha perdido o rastro temporal da origem desta história exemplar, é possível afirmar que as lutas contra o patriarcado e a dominação política e econômica associadas a ele vêm de muito longe para nós mulheres negras. E o vigor com que esta narrativa vem sendo atualizada até o século XXI assinala sua pertinência na modernidade ocidental, guardando uma perspectiva de continuidade fundamental ao longo dos séculos.
O feminismo, como teoria, veio depois.

Quarto movimento: ialodês e feministas, o encontro
As transformações vividas pelas sociedades ocidentais a partir do final da década de 60
tiveram, entre seus “achados” a reapropriação do corpo por aqueles profundamente marcados pela vivência judaico-cristã, que lhe conferia estatuto de inferioridade frente à territórios mais altos, moradas da alma, ou do espírito. O corpo, seu formato, sua fisiologia, segundo as releituras desta tradição pr
A retomada do corpo foi simbolizada pela chamada “revolução sexual”, tornada possível pela consolidação do pensamento científico como modelo explicador do mundo e através do acesso às novas possibilidades tecnológicas de processos corporais representadas pelo advento dos métodos contraceptivos hormonais.
Poderíamos supor que as experiências buscadas como pressuposto da transformação política vividas por mulheres e homens brancos poderiam significar um encontro com as formas de existência e humanização de populações outras como indígenas, negros, por exemplo. Grupos entre os quais a existência dissociada em corpo versus mente carecia de sentido ou se apresentava como resultado profundo da violência colonialista e racista, objetos de estratégias de resistência e confronto há muito engendradas. O mesmo podendo ocorrer com novos intercâmbios acerca das vivências no mundo do trabalho, dos espaços abertos e da rua, desde sempre habitados por negras e indígenas; pelas experiências de liderança tanto política, comunitária quanto religiosa; para nomear somente alguns aspectos, de todo modo apontados como cruciais pelo movimento político emergente.
No entanto, quando surge o feminismo como movimento de afirmação política das mulheres na Europa e nos Estados Unidos, sua perspectiva profundamente eurocêntrica, burguesa, individualista, marcada pelo colonialismo e pelo racismo tornaram dificultosa a relação com mulheres negras, indígenas, asiáticas, ciganas e outras, habitantes de culturas diversas ainda que compartilhassem muitas vezes a mesma geografia.
As afirmativas de homogeneidade de necessidades e aspirações entre as mulheres, colocadas pelo feminismo emergente traziam embutidos mecanismos da redução, invisibilização e mesmo de reforço a ações de aniquilamento contra milhões de mulheres do mundo. Assim, a nova teoria e prática políticas forma profundamente rechaçadas por grande parte das mulheres negras, como continuidade de seu rechaço a tudo que significasse dominação e racismo.
Por outro lado, desde a perspectiva das mulheres negras no Brasil, a teoria feminista
incipiente exercia duplo papel de repulsa e atração. Repulsa por seu conteúdo excludente. E atração por oferecer novas ferramentas de luta para superação de quadros de subordinação, bem como por seu recurso à modelos performáticos de atuação que muito se aproximavam daqueles vividos por nós. Assim, a prática feminista cotidiana ao buscar se fundamentar na vivência grupal, na apropriação e valorização do corpo e da celebração da sexualidade, se aproximava das práticas narrativas e de luta já vividas. No entanto, os elementos de valorização da racionalidade presentes também nestas práticas com seu olhar inferiorizante sobre as práticas não verbais e simbólicas vividas no contexto das práticas negras e indígenas criaram um ambiente pouco propício a construção de intercâmbios e parcerias a este nível.
No dia a dia, o racismo e as diferenças de classe social também foram barreiras consistentes contra a participação de mulheres negras que não cumprissem os requisitos de escolaridade a aproximação com os valores burgueses universitários. Principalmente, a denúncia sistemática do reconhecimento do racismo como estruturante das relações , inclusive entre as mulheres entraram em choque com a perspectiva da irmandade entre mulheres que o feminismo buscava afirmar nestes tempos.

Quando o encontro é possível:
Definitivamente atraídas pelos novos discursos feministas, as mulheres negras paulatinamente vão se aproximar de suas práticas. É importante considerar que esta aproximação vai acontecer em meio a conflitos importantes, de raça e classe principalmente.
Trata-se de um confronto com a corrente feminista que vê a presença ativa e denunciadora das mulheres negras como expressões da passionalidade inaceitável e incompatível com a feição de irmandade que se quer imprimir. Ao mesmo tempo, esta presença torna visível também outros conflitos dentro do feminismo emergente, que incluem as falas das mulheres lésbicas, das trabalhadoras urbanas e rurais, das indígenas, das prostitutas e muitas outras.
A vivência destes conflitos vai, no prazo maior, produzir uma nova feição ao feminismo.
Feição esta múltipla, diversa, um ambiente atrativo o bastante para o surgimento de organizações de mulheres negras auto-intituladas feministas. E onde o conflito, visto como parte do processo de coexistência e crescimento, será vivido como centelha criativa e não como ameaça. Ainda que determinados segmentos tenham vivido o conflito como ameaça à sua atuação e hegemônica e, em alguns casos, se afastado dos processos cotidianos do movimento.
As mulheres negras auto-intituladas feministas e seus grupos de reflexão e atuação surgem no Brasil a partir da década de 70. Uma característica marcante de seu trabalho é a iniciativa de articular a discussão e a prática anti-racista com a feminista, amparada num recurso à tradição cultural afrobrasileira. Interessante notar que muitas destas organizações foram lideradas por mulheres com nível de escolaridade elevado, quando comparadas à média de escolaridade da população negra no país.
Uma das principais figuras deste momento é Lélia Gonzáles[viii], mulher profundamente
comprometida com a articulação dos diferentes aspectos da ação política das mulheres
negras. Ela mesma uma intelectual respeitada, socióloga e professora universitária, ao mesmo tempo que fundadora de grupos feministas; ativista partidária de esquerda (tendo integrado, inclusive a direção nacional do Partido dos Trabalhadores, de onde saiu por este partido não considerar a luta anti-racista entre suas bandeiras da época); fundadora do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial e do Nzinga – Instituto de Mulheres Negras do Rio de Janeiro.
A trajetória de Lélia Gonzáles, para além de assinalar seu papel de liderança política em
diferentes espaços que não apenas aqueles só de mulheres, demonstra uma prática comum às muitas mulheres negras envolvidas no ativismo da década de 70 até os dias de hoje.
Além dos campos de atuação já assinalados, ou seja, partidos, organizações negras mistas, associações culturais, universidades e grupos feministas, as mulheres negras atuarão também
nas associações de moradores de favelas e bairros pobres, nas organizações de trabalhadoras e trabalhadores rurais e urbanos, nos grupos de mães na luta por melhor qualidade da educação pública, nos movimentos pela reforma e melhoria do sistema de saúde pública, nas articulações religiosas tanto de matriz afrobrasileiras quanto cristãs e outras. E, inclusive, nos movimentos políticos de confronto com regimes ditatoriais e na constituição nos movimentos de luta homossexual. Ainda que esta participação careça ainda de reconhecimento maior por parte do conjunto destes movimentos sociais e da sociedade.
Nos diferentes espaços de atuação, as ações de confronto do racismo e do patriarcado se
colocavam como indissociáveis, a partir de uma perspectiva que teóricas vieram a chamar mais recentemente de interseccionalidade[ix]. Ou seja, a partir do reconhecimento de que a subordinação e as lutas de mulheres e homens por transformação social decorrem de diferentes fatores que atuam concomitantemente sobre indivíduos e grupos, segundo características que lhes são próprias e de acordo com os esquemas de poder e dominação em vigor concomitantemente.
No entanto, a definição de interseccionalidade refere-se principalmente a uma tentativa de aproximação com a perspectiva de integralidade de indivíduos e grupos a partir do ponto de vista ocidental em vigor que dissocia, hierarquiza e racionaliza diferentes aspectos da existência. Ou seja, se esta forma de conceituação pode significar um passo adiante na incorporação da perspectiva de ação posta pelas mulheres negras, ela ainda se mostra insuficiente por sua dificuldade de assumir, por exemplo, as perspectivas culturais de matriz africana.
É como se a ialodê, partida em múltiplos pedaços, fosse reconstituída pela noção de interseccionalidade. Mas ainda não enfrenta o ponto de vista onde ela possa ser inteira, autêntica, impedindo-se a fragmentação secundária a processos de dominação que a inferiorizam e desqualificam.

O feminismo das mulheres negras no início do século XXI:
O principal desafio que o século XXI coloca para ativistas como um todo e para as mulheres negras feministas é o enfrentamento do pensamento único, das políticas neoliberais, do processo de mundialização e hiper-concentração da economia a partir de pequenos grupos e indivíduos que têm sob seu controle meios informatizados de especulação financeira.
Após anos de sua constituição, o feminismo negro do Brasil, da América Latina e do Caribe logrou alterações na face do feminismo na região, possibilitando a problematização das hierarquias e desigualdades entre mulheres.
Por outro lado, ampliaram também as possibilidades de atuação do movimento negro da
região, a partir da implementação de pautas de reflexão e ação no enfrentamento das desigualdades de gênero no interior da agenda anti-racista.
É obvio que as novas feições implicam ainda em conflito, luta, instabilidades – perspectiva muito próxima dos pressupostos culturais afro-diaspóricos a que estamos acostumadas.
Há que se recordar que a marcada de luta identitária teve e ainda tem relevância para mulheres negras feministas, nos diferentes espaços por onde circulam como agentes da política.
No entanto, a luta identitária travada até então se mostra aparentemente insuficiente para o enfrentamento das vicissitudes postas pela mundialização econômica neste momento. Isto, uma vez que o deslocamento digital e veloz de vetores força especulativo-financeiras têm como pressuposto a desprezo a fronteiras, mascar identitárias ou o que quer que signifique singularização, Uma vez que é nesta ignorância deliberada e sua conseqüente produção de instabilidades que o capital financeiro produz o meio ambiente rico aos ataques especulativos e ao lucro desmesurado.
A luta interposta pela sociedade civil passa a requisitar, a partir daí, maior articulação e
internacionalização. Numa outra espécie de mundialização e circulação digital de outros
vetores de força, marcados pela ação política de resistência ao hiper-economização da vida e redução das singularidades a instrumentos especulativos.
Neste panorama, o movimento de mulheres negras vê fragilizados seus instrumentos de ação, principalmente aqueles de afirmação identitárias. Ao mesmo tempo que é sobre o contingente de mulheres negras de todas as partes do mundo e, em particular, as regiões periféricas ao capitalismo especulativo (como é o caso da América Latina e do Caribe) que os efeitos das alterações econômicas vão se realizar mais duramente. O que, de modo contundente, vai retirar em muitos casos, as condições materiais mínimas requisitadas para uma atuação política mais organizada.
Diante da necessidade de novos discursos políticos que apontem para a elaboração de modelos futuros de ação, o movimento de mulheres negras vai ser tomado de intensa perplexidade. Por um lado, suas práticas cotidianas produzem um movimento de manutenção de fórmulas e discursos já testados – que, no entanto, têm se mostrado insuficientes para a produção de novas leituras do mundo. Fato agravado por sua ausência de forma expressiva nos novos fóruns políticos da nova sociedade civil mundializada. Ausência esta secundária tanto a entraves materiais (que muitas vezes se mostram instransponíveis) quanto a dificuldades de articular as plataformas de ação local ou regional fundadas na afirmação identitária e no alargamento do feminismo e do anti-racismo com as novas pautas de comércio internacional; propriedade intelectual; novas feições de direitos humanos e tantas outras novidades interpostas pelo redesenho da política e pela mundialização da economia como nova feição do Império.
Diga-se de passagem que as dificuldades vividas pelas organizações feministas de mulheres negras guardam semelhança como diferentes outras organizações, principalmente aquelas vividas por sujeitos “periféricos”.
A necessidade de articular a luta segundo os novos paradigmas está por trás da crise vivida pela principal organização de mulheres negras da região, qual seja, a Red de Mujeres Afrolatinas e Afrocaribeñas.

A Rede de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe e seus desafios futuros:
Esta Rede surgiu no ano de 1992, integrada por mulheres negras da maioria dos países da região. Seu principal objetivo referia-se a articular o feminismo negro da região a partir de ações de afirmação identitária das mulheres negras, do combate ao racismo e à discriminação.
Suas bandeiras abrangentes mostraram-se insuficientes para a implementação de uma agenda política comum às mulheres negras da região, de modo a vir a constituir-se em agentes políticas relevantes no cenário tanto local, regional quanto internacional. Ao contrário esta articulação não foi capaz de estabelecer estratégias ágeis de atuação e construção de agendas comuns. E, surpreendentemente, a Red mostrou-se incapaz de lidar com as diferenças e os conflitos secundários a um posicionamento político mais explicitamente colocado. E que dissesse respeito ao enfrentamento do contexto político e econômico da mundialização especulativa financeira.
É importante lembrar que este impasse é partilhado pelo movimento feminista como um todo. Bem como pelo movimento anti-racista.
No entanto, a demanda por uma agenda contundente está colocada e vai requerer das
feministas negras a tomada de posição inadiável.
As muitas alternativas postas vão requerer a explicitação de conflitos, a radicalização de
posições, a delimitação de campos – o que remete aos modelos de mobilização dos anos 70 em diante. Mas que também incorpore as novas feições diaspóricas que a sociedade civil recoloca. Ao mesmo tempo que possa articular as novas identidades sem abrir mão da sua feição singular. As ialodês contemporâneas enfrentam um desafio que talvez só tenha algum patamar de comparação com a mundialização econômica mercantil que deu origem à diáspora via tráfico-transatlântico de escravos.
É preciso então, novamente, por abaixo as novas regras do novo reino para que possamos, novamente, readquirir o poder e a riqueza que Oxum requisita.
Notas:
[1] Artigo publicado na Nouvelles Questions Féministes – Revue Internationale Francophone, vol. 24, n. 2, 2005
[i] Coordenadora geral de Criola. Médica. Doutora em Comunicação pela Escola de
Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[ii] Fala da ativista Pedrina de Deus, citada por Lemos, Rosália, “A face Negra do Feminismo: problemas e perspectivas”. In Werneck, Jurema, Mendonça, Maisa e White, Evelyn C.( 2000) O Livro da Saúde das Mulheres Negras:nossos passos vêm de longe (pp.62-67). Rio de Janeiro, Pallas Editora/Criola/ Global Exchange.

[iii] Hooks, bell (2000). Feminist Theory : from margin to center. Cambridge, South End
Press, 2nd edition, p. xi

[iv] Quilombos eram territórios de defesa e liberdade criados pelos escravos no Brasil . Estes assentamentos viveram diferentes modelos práticos, desde pequenos ajuntamentos temporários até a constituição de estados paralelos, como foi o caso do Quilombo dos Palmares, que existiu por um período de cerca de 100 anos.

[v] Nome dado, no Brasil às habitações destinadas aos escravos caracterizadas pela extrema precariedade.

[vi] Grande parte da memória africana no Brasil, em especial no período colonial e escravista, foi apagada, tanto através da queima dos arquivos pelo governo republicano recém iniciado, como também pelo empreendimento de diferentes estratégias de apagamento da presença africana no Brasil, como parte da política eugenista de branqueamento da nação desenvolvida pelo estado Brasileiro a partir do início do século XX.

[vii] Candomblé é uma das religiões de origem africana criada e em vigor no Brasil; ketu refere-se a uma das correntes religiosas, que tem como patrono o orixá/ deus Oxóssi, que tem origem na cidade de Ifé antiga.

[viii] Em julho de 2004 marca-se a passagem dos dez anos de sua morte.

[ix] Apresentação feita na tenda das Mulheres, durante a III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, África do Sul, 2000.

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